O debate a respeito da possibilidade de aprender qualquer coisa durante as horas em que estamos dormindo vem acontecendo há muitos e muitos anos, e pode parecer um atalho interessante para quem quer dominar o inglês mais rápido.
Diversos estudos já foram conduzidos para avaliar se a memória que acessamos em períodos de consciência pode ser trabalhada durante períodos de inconsciência, assim como já foram lançados vários produtos prometendo ensinar dessa forma. Apesar do cérebro humano ser extremamente complexo e não haver um consenso sobre o assunto, atualmente algumas conclusões podem ser alcançadas ao investigar o resultado dos experimentos em laboratório e os efeitos reportados por usuários de produtos deste tipo.
Invenções e experimentos históricos
Nos perguntamos sobre o papel dos sonhos e por quê necessitamos dormir desde a Antiguidade. Os filósofos gregos concluíram que dormir é indispensável à todos os seres vivos, e que os sonhos estão ligados ao processamento dos eventos vividos durante o dia.
Há registros do questionamento científico sobre a conexão entre o aprendizado e as horas que passamos dormindo desde o fim do século XIX. Em 1893, o médico Santiago Ramón y Cajal descobriu que a plasticidade do cérebro não está limitada à infância, como se acreditava anteriormente, provando ser possível aprender e dominar qualquer habilidade nova na fase adulta. Ele também estudou o impacto do sono na capacidade de atenção.
O inventor e editor de ficção científica Hugo Gernsbach, natural de Luxemburgo, que imigrou para os Estados Unidos em 1905 na esperança de que suas invenções seriam mais apreciadas na América, publicou em 1911 uma teoria ficcional de sleep learning. Ainda dentro do campo da literatura, o clássico distópico Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, publicado em 1932, também teorizou sobre como as pessoas poderiam utilizar o período em que dormem para absorver doutrinas morais, atestando que a sociedade já estava muito interessada nessa possibilidade no início do século passado.
Imagem: Psycho-Phone. Fonte: Cummings Center Blog. 26/07/2023
Por mais que ainda fosse somente especulação e ficção, e nenhum estudo tivesse provado a eficácia de um método de aprendizado para realizar dormindo, não demorou para chegarem produtos no mercado prometendo este resultado.
Entre 1927 e 1933, Alois Benjamin Saliger comercializou em Nova York milhares de exemplares de seu produto original Psycho-Phone. No panfleto de propaganda, o empresário-inventor prometia ao cliente o controle do subconsciente para desenvolver força mental e física, vitalidade, coragem, se libertar de vícios e limitações mentais, assim como direcionar o aparelho para necessidades específicas, que poderia ser aprender um novo idioma, por exemplo.
Por mais atrativo que tenha sido por alguns anos, o Psycho-Phone caiu em desuso com clientes reportando não sentir efeito algum. Logo, cientistas começaram a realizar experimentos para entender se este tipo de produto funciona ou não passa de um golpe.
Nos anos 50 e 60, houve uma polarização entre cientistas com foco em neurologia e entusiastas de sleep learning. Apesar de alguns médicos e pesquisadores tenham reportado testes onde foi possível introduzir com sucesso um hábito novo no paciente com sugestões enquanto dormiam, similar ao efeito da hipnose, em 1955, Charles W. Simon e William H. Emmons realizaram um experimento que foi publicado na revista científica Psychological Bulletin com o título “Learning during sleep?” onde provaram que tais demonstrações da possibilidade de aprender dormindo não eram confiáveis, pois os critérios não estavam suficientemente definidos, além de que os pacientes não lembravam espontaneamente as informações adquiridas, o que desvia do conceito de aprender.
Mesmo sendo interpretada por muitos intelectuais como uma pseudociência, a ideia de aprender dormindo continuou sendo defendida ao redor do mundo. Em 1962, foi criada a Sleep Learning Association, associação britânica de profissionais, entre eles psicólogos, psiquiatras, cientistas sociais, linguistas e jornalistas, que promove pesquisa e material de divulgação sobre o assunto. Inclusive, nos anos 80 e 90, o mundo viu um ressurgimento de produtos similares ao Psycho-Phone, mas no formato de fitas cassete.
Opinião atual dos cientistas sobre sleep-learning
Atualmente, muitos estudiosos olham para esta questão com uma abertura maior do que simplesmente definir se é ou não possível aprender dormindo, presumindo que existe, sim, uma forma de induzir acontecimentos no cérebro no período de sono, mas com muito ceticismo em relação ao efeito sentido na consciência do indivíduo. De acordo com o artigo publicado na revista digital Live Science em 8 de março de 2021, “Can You Learn Anything While You Sleep?”, o neurocientista Thomas Andrillon, da Universidade Monash, na Austrália, afirma que, “ver sinais de que um tipo de aprendizado ao dormir é possível é interessante para um cientista, mas a maioria das pessoas não está interessada nesta forma básica de aprender.”
Não é possível aprender um idioma se o único contato que você tem com a língua acontece durante suas horas de sono. Contudo, pode ser que ainda lhe resta a dúvida: se eu ouvir inglês dormindo, isso me ajudará a aprender mais rápido? É uma forma de revisar e fixar o conteúdo que aprendi acordado?
Não há um consenso. A resposta depende do que você considera aprender, revisar e fixar. Foram comprovados efeitos positivos na retenção de informações através de experimentos que testavam se as pessoas conseguiam se lembrar do que foi introduzido em seus sonhos em forma de sons. Em um estudo recente na Northwestern University, nos Estados Unidos, liderado pelo neurocientista Ken Paller, aconteceram avanços importantes na recuperação de memória motora em pessoas que sofreram acidentes que comprometeram a rede neuronal através da associação de sons com exercícios feitos durante o dia, e reaplicando os mesmos sons ao dormir.
É relativamente aceito desde o trabalho de Paller que é empiricamente possível agilizar a consolidação do aprendizado no cérebro com sons durante a noite, mas não há estudos suficientes para afirmar que tal afirmação se aplica ao aprendizado de idiomas especificamente. De qualquer forma, é possível interpretar que um estudante de inglês que estude muito enquanto está acordado, aplicando sons específicos durante este período e os reaplicando ao dormir, talvez sentiria o efeito de aprender um pouco mais rápido.
Por outro lado, é evidente que qualquer tipo de método de sleep-learning não seria a principal abordagem responsável por levar alguém à fluência no idioma, e também não reduziria a necessidade de estudar inglês durante o dia.
Aprendizado saudável
Se o objetivo de aprender inglês, ou outro desejo relacionado com avanço acadêmico e profissional, está lhe incomodando ao ponto de você considerar sacrificar o seu descanso, é provável que você não esteja nutrindo uma rotina saudável.
Quando sobrecarregamos o cérebro e o corpo, naturalmente nos tornamos menos produtivos. Ter mais horas no dia por dormir menos, por exemplo, é somente uma ilusão de produtividade, e o mesmo vale para a ideia de um rendimento maior por sacrificar o silêncio durante o tempo em que está descansando.
Enquanto a eficácia de sleep-learning ainda é duvidosa, a convicção de que dormir bem é fundamental para a saúde do cérebro, e que barulho constante durante a noite causa perturbação do sono, já está estabelecida como uma verdade.
Já que, quando dormimos, o cérebro avalia e armazena informações que adquirimos enquanto estamos acordados, é plausível concluir que dormir oito horas todas as noites, em silêncio e no escuro, sem interrupções, seria a melhor forma de usar estas horas para aprender mais rápido. Durante o dia, com a mente bem descansada, será possível render muito mais nos estudos do que se renderia dormindo pouco, ou dormindo com barulho.
Fontes:
- Marketing Magazine Australia
<https://www.marketingmag.com.au/tech-data/a-stab-in-the-dark-how-sleep-influences-memory-and-why-marketers-should-care/>
- Brazilian Sleep Association – Sleep Science.org
<https://sleepscience.org.br/details/145/en-US/physiology-of-dreaming> - Cummings Center for the History of Psychology
<https://centerhistorypsychology.wordpress.com/2017/02/23/the-psycho-phone/> - Northwestern University Magazine
<https://magazine.northwestern.edu/discovery/sleep-to-remember/>
Live Science.org
<https://www.livescience.com/64920-how-learn-during-sleep.html
(Arantxa Pellicer Meira) é graduada em Cinema pela Universidade Federal de Santa Catarina e trabalhou como tradutora e professora de Inglês de 2017 a 2021